Em “Spoiler”, Fernando Machado, que começou a escrever com 75 anos de idade, se debruça sobre racismo, homofobia e transfobia, para contar a história de homem que descobre que o afeto é mais poderoso do que qualquer ideia pré-concebida sobre algo
Ambientada no início dos anos 70, uma época em que velhos preconceitos começam a se sufocar com os ares de um novo modo de pensar e agir, “Spoiler”, segundo romance ficcional do escritor Fernando Machado, publicação da Editora Labrador, narra a história de um homem conservador, que ao tentar manter velhos hábitos acaba sendo atraído por seus temores mais profundos e desejos mais recônditos. Dr. Clovis Valancy de Oliveira Filho é o seu nome. Ele é dono de um cartório, na cidade de São Paulo, casado com Valentina e pai de três filhos: Clovico, seu primogênito, Laura e Caetano. Está plenamente satisfeito com uma vida notabilizada pela estabilidade e com uma família que considera perfeita. Mas um integrante familiar que transgride, um despertador que para de funcionar, coloca tudo a perder.
Certo dia, após voltar do trabalho, dr. Clóvis é informado pela esposa que Clovico fora flagrado pela irmã usando o vestido dela. Preconceituoso, conservador, homofóbico, o dono do cartório sente que o seu mundo está prestes a desmoronar. Posteriormente, quando seu relógio despertador de corda deixa de funcionar, o protagonista da trama vê nesse prosaico episódio o sinal de que nada mais será como antes. Lentamente, perde o gosto pela vida e tudo que fazia de modo metódico e rotineiro, e por isso mesmo adorava, como sentar-se no mesmo lugar do ônibus durante o trajeto para o trabalho, assinar documentos no cartório, pintar telas no escritório e fazer sexo com sua esposa, deixam de fazer sentido.
Um despretensioso encontro com um velho conhecido é o estopim para que dr. Clóvis transforme sua vida radicalmente. O dono do cartório é informado pelo amigo dos tempos de escola que seu nome havia sido envolvido em uma “brincadeira” que tomou rumos inesperados. Por conta de uma “mentirinha”, relata o companheiro de priscas eras, havia recebido um telefonema de uma pessoa misteriosa, que prometia lhe fazer um procedimento clandestino, lhe dar um novo nome, uma nova ocupação, um novo lar. O problema é que no momento de contar o nome ao estranho no telefone disse que se chamava Clóvis Valancy. O que era para ser apenas uma “pegadinha” entre amigos se transforma na grande chance de o protagonista escapar de uma realidade que lhe parece cada vez mais sufocante.
Para que dr. Clóvis consiga fugir é fundamental a intervenção de outro personagem, cuja história o autor relata paralelamente à trama do protagonista. Ele se chama Pedro Guilherme Castilho, é médico cirurgião plástico e faz um contraponto ao dono do cartório. Ao contrário deste, é arrojado, aventureiro e não vive somente pensando no próprio umbigo. Associado à organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), Pedro se desloca até a Nicarágua para atender vítimas de um terremoto que devastou o país. Lá, acaba sendo perseguido pelo comandante da Guarda Nacional do País, Dominik Lopes, que busca o paradeiro de sua filha, Mercedes Lopez, metida com a Frente Sandinista de Libertação Nacional.
Com auxílio de Mercedes, que acaba se tornando sua esposa e de Hector Bacelar, o Rato, um homem que vive no submundo da Nicarágua e que sempre dá um jeito para tudo, o médico cirurgião plástico consegue escapar. Em Honduras, utilizando-se de suas expertises e de amigos cirurgiões, Pedro e sua amada recebem novos rostos. Com os contatos de Rato, ganham também novos nomes: ele, Leopoldo Calderon; ela, Isabel de Moura Ortiz. Ambos fogem para o Brasil, mais especificamente, Santos. Impactado por tudo que vivenciou, Pedro tem uma ideia para retribuir a ajuda que lhe salvou a vida: abrir uma clínica, com o objetivo de ajudar perseguidos políticos a conseguirem novas identidades. Mas para isso, ele precisa de dinheiro, que acaba conseguindo prestando serviços a ricos que, por motivos não tão nobres, desejam uma nova existência.
Neste ponto, passada um pouco mais da metade do livro, a história dos dois personagens principais da obra até então se entrelaçam. Dr. Clóvis vai à clínica de Leopoldo Calderon, muda de face e de identidade, recebendo o nome de Benjamin Fernandes, um homem dedicado à pintura artística. É alojado no Vilarejo Boaventura para iniciar seu processo de sociabilização. A partir daí, o autor se detém exclusivamente no desenvolvimento da trama do ex-dono de cartório, atual pintor artístico. Acompanhamos uma guinada vertiginosa na trajetória de dr. Clovis/Benjamin Fernandes, caracterizada por uma descida até os últimos graus do inferno, seguida por uma redenção simbolizada pela libertação de um pombo branco em uma cerimônia religiosa de matriz africana.
No vilarejo, em sua primeira incursão pelo mundo exterior, mais especificamente, pelas margens de um lago, onde deposita seu cavalete e suas telas, para pintar paisagens, Benjamin sente-se atraído por uma mulher que se destaca em relação aos demais presentes pela “cor da pele negra retinta, pelos cabelos curtos em harmonia com seu corpo esguio, pela delicadeza de seus traços naturais e pela silhueta elegante”, a qual apelida de si para si de “princesa núbia”. A descrição dessa personagem pelo autor é de suma importância para destacar o início do processo de transformação do protagonista. Já que, além de homofóbico, é apresentado como sendo racista.
A atração e o afeto que desenvolve por Zuri, a princesa núbia, acaba falando mais alto que o preconceito arraigado, e Benjamin se entrega a uma paixão que parece sem limites. Quando acreditamos que a trajetória de redenção do personagem está completa, que, enfim, superou suas fraquezas, somos apresentados a uma nova reviravolta, aquela que efetivamente concluirá o seu processo de regeneração na trama, iniciado com a mudança de identidade. Naquela que promete ser a primeira noite de amor entre Benjamin e Zuri, o protagonista descobre que ela nasceu com o gênero masculino. Havia passado pelo mesmo procedimento de Benjamin, buscando esconder-se de um poderoso mercador africano que buscava matar-lhe em sua terra natal, um pequeno país incrustado nas montanhas da África do Sul.
Trama repleta de mistérios e reviravoltas, “Spoiler” prende o leitor de início ao fim. De maneira às vezes cadenciada, sem pressa de dizer a que a veio, às vezes frenética, deixando o leitor sem fôlego, o autor apresenta seus personagens e desdobra sua história, até um desfecho inesperado e repleto de lirismo. A obra destaca-se também por sua escrita: rebuscada (não raras vezes o autor transporta o leitor para uma época mais sisuda e “respeitosa”) e corajosa (Machado não se exime de colocar palavras duras na boca de seu personagem mais controverso). O livro, sem sombra de dúvidas, é um retrato de uma época, mas dialoga com os tempos atuais, ao tocar em preconceitos que pareciam superados, mas que, de fato, estão apenas escondidos (cada vez menos, infelizmente).
Ficha Técnica:
Editora: Editora Labrador; 1ª edição (29 agosto 2024)
Idioma: Português
Capa comum : 176 páginas
ISBN-10: 6556255963
ISBN-13: 978-6556255965
Dimensões: 16 x 10 x 23 cm
Gênero: Literatura/Ficção
Valor: R$ 33,62